sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Melancolia




Ai miserável de mim e infeliz!

Apurar, ó céus, pretendo,
Já que me tratais assim,
Que delito cometi
Contra vós outros, nascendo;
Que, se nasci, já entendo
Qual delito hei cometido:
Bastante causa há servido
Vossa justiça e rigor
Pois que o delito maior
Do homem é ter nascido

E só quisera saber,
Para apurar males meus
Deixando de parte, ó céus,
O delito de nascer,
Em que vos pude ofender
Por me castigardes mais?
Não nasceram os demais?
Pois se eles também nasceram
Que privilégios tiveram
Como eu não gozei jamais?

Nasce a ave, e com as graças
Que lhe dão beleza suma,
Apenas é flor de pluma,
Ou ramalhete com asas,
Quando as etéreas plagas
Corta com velocidade
Negando-se à piedade
Do ninho que deixa em calma
Só eu, que tenho mais alma,
Tenho menos liberdade?

Nasce a fera, e com a pele
Que desenham manchas belas,
Apenas signo é de estrelas
Graças ao douto pincel,
Quando atrevida e cruel
A humana necessidade
Lhe ensina a ter crueldade
Monstro de seu labirinto:
Só eu, com melhor instinto,
Tenho menos liberdade?

Nasce o peixe, e não respira,
Aborto de ovas e lamas,
E apenas baixel de escamas
Por sobre as ondas se mira,
Quando a toda a parte gira,
Num medir da imensidade
Co’a tanta capacidade
Que lhe dá o centro frio:
Só eu, com mais alvedrio
Tenho menos liberdade?

Nasce o arroio, uma cobra
Que entre as flores se desata,
E apenas, serpe de prata,
Por entre as flores se desdobra,
Já, cantor, celebra a obrada natura em piedade
Que lhe dá a magestade
Do campo aberto à descida:
Só eu, que tenho mais vida,
Tenho menos liberdade?

Em chegando a esta paixão
Um vulcão, um Etna feito,
Quisera arrancar do peito
Pedaços do coração.
Que lei, justiça, ou razão,
Nega aos homens – ó céu grave!
Privilégio tão suave,
Exceção tão principal
Que Deus a deu a um cristal,
Ao peixe, à fera e a uma ave?

Monólogo de Segismundo
(LA VIDA ES SUEÑO, Ato I, Cena I – Pedro Calderón de la Barca)